Imagino que o mesmo céu desaba sobre ti. Que as luzes da cidade refractadas em mil gotas vão acabar em ti. E eu irei encontrar-te, na multidão, à espera, por fim.
Mas a chuva é só chuva. A cidade não tem fronteiras. E nada te aproxima de mim.
A questão surgiu durante o episódio “Desire” do The Minimalists Podcast - “Qual a coisa, dos últimos 7 dias, que vais recordar daqui por 10 anos?”.É uma pergunta cheia de curvas. É ansiogénica.
De facto, o que tende a ficar é o trauma. Aquele instante em que se ouve, por dentro, o estilhaçar do osso. Em que a lembrança é eternamente recém-nascida.
O tempo cura tudo, bem sei. O problema é quando parte do tempo pára e a eternidade (in)desejada se apresenta vestida de perigo.
Assim foste tu. Deixaste o relógio partido, a marcar a hora do crime.
Daqui por 10 anos espero não me lembrar de nada, se isso significar que o meu ponteiro dos segundos voltou, finalmente, a andar.
Sob o olhar sobranceiro de quem dirigia a turma trocavam-se bilhetes e borrachas, lápis ou afias, comentários ou risos transformados em sorrisos pelo silêncio imposto.
Da escadaria que parecia terminar à porta do primeiro andar da eternidade, o branco etéreo filtrado pela sua clarabóia inatingível, saíam patamares a cada lado. Era aí que esperávamos. Eram esses minutos, esse encontro, que faziam da escola o sítio onde queríamos estar. Até porque nenhum de nós precisava, de facto, de lá estar. Era a escola depois da escola. Era a magia dos arco-íris depois das paredes monocromáticas das manhãs repetidas.
Saindo de umas aulas a caminho de outras.Fugindo para salas com contrabaixos onde fingíamos ser músicos de jazz no meio da formação clássica. Escapávamo-nos para as salas de percussão onde aparentemente o ruído era permitido, desde que respeitados os silêncios entre ritmos. Trocávamos instrumentos, arranhávamos violinos e soprávamos em trompetes, com aquele que sabia o truque catalisador da sonoridade a aquiescer que “até nem estava mal”.
Foi nesses primórdios de vida e possibilidade, depois da sinfonia do modem a ligar-se à linha telefónica, que o teu correio chegou, à velocidade medida em KB. Chegou com o estrondo de uma bomba a cair no meio de outro local de impacto.
Uma mulher. No meio de outra mulher. Com outra que não era mais que uma miúda. A gerir coisa nenhuma. Uma declaração de amor, em código binário, que viria a alterar para sempre a vida vivida naquela escola. Foi o instante em que a música parou.
Hoje é um dia que o meu pai não viu. Não viu este dia nos últimos 13 anos. Vou assinalando mentalmente os anos que ficaram por fazer, as vidas que ficaram por viver.
Hoje, no dia que seria de festa, a festa aconteceu. Na possibilidade, na mudança.
Hoje perguntaram-me quantas pessoas morreram às minhas mãos. Creio que, às minhas mãos literalmente, apenas uma. O pai que sobrou do pai quando o pai desapareceu. O meu avô.
Nada é o que era como quando todos estavam vivos e se festejavam aniversários. Mas a vida acontece e, no processo, está a felicidade. Não mais à frente, no talvez imaginado; não lá atrás, numa remota lembrança do que não é mais. A felicidade acontece agora, quando conseguimos a gratidão daquilo que nos é oferecido, ainda que nem sempre pedido ou desejado.