Que nunca me esqueça do grande auditório numa manhã de verão com cara de outono.
A patética na estante do piano, professor e aluna discutindo a divisão do tempo, as articulações das frases, quando entra uma cara de outros tempos, de violino na mão, a surpresa pelo auditório com gente.
As hesitações e o silêncio entre as partes, interrompidos por:
- Preciso de um lá!
- Um lá!, respondi tocando... E assim soou; e assim seguiu, violino na mão com a corda afinada.
De cada vez que alguém, com ar vencedor, anuncia ter enganado a morte em determinada altura, eu pergunto-me como é possível essa sensação. Não a de ter adiado o inevitável, mas a de invencibilidade. Só me sinto invencível quando decido o que fazer com cada um dos meus instantes, agora. Precisamente por reconhecer, reflectir e aceitar a constante mudança de estados até que o estado seja nenhum.
Saber que a morte é certa e reflectir sobre o que isso diz da vida é uma capacidade única do ser humano, racional. Ainda assim, tantas vezes se prefere o pacto de silêncio como se, ignorando a paragem final, ela passasse por nós como todas as outras que se vêem pela janela de um combóio que não se detém.
Reconhecer - em consciência - a existência de um fim, ainda que não se saiba quando, dá-nos a capacidade de viver uma vida melhor. Mas basta um olhar em volta e encontram-se objectivos: o que alcançar; como alcançar; quando alcançar. Com a importância de algo capaz de permitir o acesso à vida eterna, uma vez atingido. Raramente se ouvem as perguntas: “porquê?”, “com que sentido?”, “para que fim?”.
Como o rei-filosófo de Platão advoga, nada que seja proveniente de uma natureza universal poderá ser mau na sua essência, mas apenas nos nossos julgamentos sobre aquela. A morte é uma dessas partes do todo. Porque não permitir o diálogo sobre ela? De forma a permitir uma saída de cena digna, sem (com menos?) arrependimentos.
Numa pequena sala, que vim a considerar acolhedora, perguntaram-me há anos o que era a bondade.
A minha resposta foi um silêncio embaraçado.
O que é a bondade?
Na altura julguei que seria dizer “sim” a tudo e a todos, mas quando parti desse pressuposto para a acção, dei-me conta de estar longe de me sentir bondosa.Dizer a tudo e a todos que sim deixou-me exausta, impaciente, intolerante, irritável e irritante...
Na casa da minha infância, antes das suas paredes reflectirem mais ecos, o meu pai pediu-me que fosse boa profissional e uma profissional boa.
O que é a bondade?
Continuo a lutar com o conceito. Dou-lhe a mão de um lado, levanto-lhe o braço do outro, inspecciono as pregas da roupa que veste e continuo pouco certa.
O que é a bondade?
O mais próximo que consigo é ser mais coerente com os meus valores; é treinar a consciência que me permite aceitar o outro como meu semelhante. Despir-me dos meus juízos e compreender que, ainda que não me faça sentido, alguma coisa o preocupa do outro lado e tentar ouvir; estar verdadeiramente presente no presente.
O cansaço era imenso quando voltei costas à vida que conhecia: trabalho e casa... para dormir. Vivia a intervalos de dois dias a cada cinco. Que desesperança. Que falta de sentido. Que compasso sincopado para o abismo.
Com a noção de ter recuperado o controlo para decidir a vida que quero viver - mesmo quando a vida se mete no caminho - encontrei tranquilidade para tentar crescer.
Hoje, com tempo, consigo sair do meu juízo precoce, olhar o outro nos olhos e senti-lo igual a mim na humanidade. Isso é o bastante para aproximar e aplacar, ainda que tão fugazmente, a solidão alheia. A falta de tribo. Pior que lança inimiga cravada no peito.
Nessa empatia, é possível desenhar um sorriso no mar de lágrimas que nasce da ferida.
Tenho os dias organizados. Consigo fazer tudo o que me faz bem e mais um pouco daquilo que me apetece. Parece uma boa existência, certo?
Os novos hábitos adquirem a minha forma, acompanhados de alguma paz, mas tudo o resto ainda mantém parte do seu lugar original.
Estou a tentar.
Arrumo aos poucos a casa, tirando o pó dos cantos da vida. Alguma claridade física e mental permite espaço para respirar e pensar. Mas à força de tanto pensar continuo sem saber de quem sinto a falta: se de ti, se do que julguei saber de mim. Continuo à procura... mas garanto: estou a tentar.
Agora. Do latim hac ora, nesta hora; mas eu ainda não sei a quietude e consigo inventar mais coisas para “esta” hora do que as horas que o dia contém.
O que é que é importante e essencial agora? Provavelmente parar... parar para pensar. E a hora depois desta e da próxima serão outras para descobrir novos instantes para estar e ser.
Há 3 dias fotografaram pela primeira vez um buraco negro. Powehi, de seu nome.
Gostava de compreender física. Gostava de perceber exactamente o conceito, mas faz-me pensar em ti. Em como engoliste a matéria de que eu era feita; em como consegues concentrar, hoje, passado e futuro.
Hoje foste para outro continente. Foste para o sítio onde hoje para ti é o meu amanhã e onde eu estou no teu ontem. Figurativa e literalmente, deixaste-me no passado e inventaste futuro, tudo no mesmo presente.
Mas, honestamente, agora não tenho tempo para ti. Vou à minha vida, procurar o buraco branco que julgam existir. Pudesse eu compreender física, mas dizem que ao invés de engolir matéria a expele... e eu preciso dessa luz!