Tempestuoso, com grande veemência.
Tempestuoso, com grande veemência. Qual andamento de Mahler. É o meu a cada três compassos de desassossego. A cada encontro de esquina com o talvez, quem sabe?
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Tempestuoso, com grande veemência. Qual andamento de Mahler. É o meu a cada três compassos de desassossego. A cada encontro de esquina com o talvez, quem sabe?
A mensagem chegou no fim do dia. Chegou enquanto eu saía de palco. Fantasia despida à porta.
Com o volante apertado entre as mãos, chorava a alma... se conseguisse manter a direcção e chegar ao destino. As luzes da cidade em estrelas de lágrimas através do teu olhar... se conseguisse endireitar o sentido da minha existência.
Cada instante. A tua mão na minha perna enquanto atravessávamos o verde do país que nunca foi o nosso. Quando as músicas eram alegres.
Cada instante. O aroma. Aquele que teimou em ficar.
A mensagem chegou no fim de um dia e nunca mais voltou a tocar.
No, I'm six gin and tonics down, baby, I can hardly stand...
Maio. Levanta o véu da possibilidade. Tem promessa de mar.
Ou Maio de outro ano qualquer; que em breve o passado é o mesmo e visto de cima os dias esbatem-se uns nos outros.
À distância suficiente tudo é pequeno.
What a night! What bliss is all about!
I thank my native north country!
From the kingdom of ice and snow,
How fresh and clean May flies in!
- Afanasy Fet
(Epígrafe da partitura de Tchaikovsky para o mês de Maio - White Nights!)
Fato de circulação. Touca. Viseira. Máscara P2. Protector de calçado. 1º par de luvas. Bata. 2º par de luvas.
O covidário é um espaço hermético onde o silêncio e o som se misturam numa cacofonia de coisa nenhuma. Somos todos iguais com o equipamento de protecção. Somos todos iguais como sempre fomos, que a pandemia veio reforçar a essência humana.
O covidário pediátrico tem por trás o som das vozes e do choro de crianças.
No meio do desconforto pareceu-me ouvir ópera, mas havia tanto ainda a fazer. Tudo no ritmo lentificado de teclados cobertos com película aderente e movimentos tolhidos pelo equipamento e pelo receio de falhar algum passo de desinfecção.
Pareceu-me, novamente, ouvir ópera por entre o choro. Mais do que ouvir senti nas entranhas que era a música da minha existência. Estava novamente na Gulbenkian. E a Prima Donna... não pude deixar de sorrir.
Levantei-me e fui ter com a mãe da criança que aguardava mais exames e perguntei-lhe “Está a ouvir ópera?”, o telefone pousado no banco vazio ao lado. Perguntei-lhe se era música. Disse-me que não e explicou-me que nunca teve oportunidade de ir à ópera, que adora. Que a voz da Callas a arrepia e tranquiliza em momentos como aquele. Fez jeito de desligar o telefone feito aparelhagem. Disse-lhe que se deixasse estar a ouvir. Vi-lhe o sorriso na curva do olhar, que agora as bocas andam tapadas.
Nestes momentos somos (mais) humanos.
Recostei-me no lugar habitual. O azul do céu do fim de dia emoldurava o verde das copas das árvores. Da zona do palco conhecido, vazio, chegavam alguns sons repetidos, em jeito de aquecimento.
Trouxeste contigo outra tonalidade de azul - densa; concreta. E essa outra moldura abraçava a pele dos ombros que eu despi lentamente ao som de mil pássaros em vôo.
Há tantos anos atrás a música havia parado. Naquele instante, com a tua chegada, reiniciaste o compasso.
Imagino que o mesmo céu desaba sobre ti. Que as luzes da cidade refractadas em mil gotas vão acabar em ti. E eu irei encontrar-te, na multidão, à espera, por fim.
Mas a chuva é só chuva. A cidade não tem fronteiras. E nada te aproxima de mim.
Sob o olhar sobranceiro de quem dirigia a turma trocavam-se bilhetes e borrachas, lápis ou afias, comentários ou risos transformados em sorrisos pelo silêncio imposto.
Da escadaria que parecia terminar à porta do primeiro andar da eternidade, o branco etéreo filtrado pela sua clarabóia inatingível, saíam patamares a cada lado. Era aí que esperávamos. Eram esses minutos, esse encontro, que faziam da escola o sítio onde queríamos estar. Até porque nenhum de nós precisava, de facto, de lá estar. Era a escola depois da escola. Era a magia dos arco-íris depois das paredes monocromáticas das manhãs repetidas.
Saindo de umas aulas a caminho de outras. Fugindo para salas com contrabaixos onde fingíamos ser músicos de jazz no meio da formação clássica. Escapávamo-nos para as salas de percussão onde aparentemente o ruído era permitido, desde que respeitados os silêncios entre ritmos. Trocávamos instrumentos, arranhávamos violinos e soprávamos em trompetes, com aquele que sabia o truque catalisador da sonoridade a aquiescer que “até nem estava mal”.
Foi nesses primórdios de vida e possibilidade, depois da sinfonia do modem a ligar-se à linha telefónica, que o teu correio chegou, à velocidade medida em KB. Chegou com o estrondo de uma bomba a cair no meio de outro local de impacto.
Uma mulher. No meio de outra mulher. Com outra que não era mais que uma miúda. A gerir coisa nenhuma. Uma declaração de amor, em código binário, que viria a alterar para sempre a vida vivida naquela escola. Foi o instante em que a música parou.
E depois deixei de esperar.
Quando decidi tentar aprender a dançar ao ritmo de emoções desconfortáveis.
Porque li que a coreografia é uma estratégia de coping. Umas músicas não são melhores que outras, só não as podemos dançar a todas da mesma forma.
Nesse dia apareceste.
E eu deixei de esperar.
Que nunca me esqueça do grande auditório numa manhã de verão com cara de outono.
A patética na estante do piano, professor e aluna discutindo a divisão do tempo, as articulações das frases, quando entra uma cara de outros tempos, de violino na mão, a surpresa pelo auditório com gente.
As hesitações e o silêncio entre as partes, interrompidos por:
- Preciso de um lá!
- Um lá!, respondi tocando... E assim soou; e assim seguiu, violino na mão com a corda afinada.
Possa a vida ter sempre a leveza de uma nota.
É chegada a altura de voltar a Beethoven.
Escolhi a Patética. Irónico.
Ainda assim opto por acreditar que move, apenas. Nem dó, nem piedade, nem ridículo. (Co)move.
Foi o primeiro transdutor das minhas emoções. O que quer que martelasse de Beethoven saía em harmonia, em beleza, em leveza, em menos dor. Uma espécie de meditação em si mesma.