Há os que vêem.
Há os que vêem.
Há os que vêem quando lhes é mostrado.
Há os que nunca irão ver.
Há, também, uma nova “(a)normalidade”. Aquela em que, em terra de cegos, quem vê é ninguém.
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Há os que vêem.
Há os que vêem quando lhes é mostrado.
Há os que nunca irão ver.
Há, também, uma nova “(a)normalidade”. Aquela em que, em terra de cegos, quem vê é ninguém.
Os dias correm tranquilos. As noites com maior ou menor sobressalto.
Pelas pedras da calçada o caminho é em frente, trauteando melodias de outra altura feita agora.
Tudo o resto, cada vez mais distante, cada vez mais pequeno, cada vez mais indiferente. Numa ilha sem nome. No naufrágio dessa existência.
Lisboa.
Os mesmos corredores onde, há precisamente duas semanas atrás, os meus pés rodopiavam em torno de um mar de lágrimas.
Hoje revi aquele fantasma que fui eu e pareceu-me tão distante; tão irreal, perante tudo o que aconteceu neste (aparente) curto intervalo de tempo. Onde os estímulos foram reduzidos a caminhadas, à procura de animais no meio da selva, a passeios por povoados paupérrimos, a conversas à mesa com desconhecidos que se tornaram próximos...
Sinto agora, mais que nunca, necessidade de retomar os hábitos que me permitem alguma calma:
• Meditação matinal
• Reflexão escrita matinal sobre o essencial desse dia
• Período de leitura - filosofia
• Exercício físico
• Piano
• Reflexão escrita nocturna
• Meditação nocturna
• Leitura
• 8h de sono
Tendo em conta que, apesar de tudo o que não existia, não lhes faltava comida nem tribo... quem estará melhor? Quem tem como estímulo uma bola de futebol feita de trapos, aquela maravilhosa luz do céu nocturno, a comida vinda da terra, ou nós, cá deste lado, que temos tudo? Tudo num ecrã; incrivelmente conectados, mas tão profundamente sós.
Consegui. Vim sozinha. Descobri que consigo voar sem a mão de alguém ao lado, para que a possa apertar; sem lágrimas a abrirem caminho porque não adianta e não controlo absolutamente nada na aviação. Mais que o medo de andar de avião, existia um medo arreigado de não ter o controlo sobre tudo à minha volta. E, como se conclui, tudo o que posso controlar é a minha reacção aos desenvolvimentos da vida.
Consegui. Não sabia se seria fácil, difícil, sozinha, em grupo.
Consegui. Pegar em camaleões, passar horas entre lianas e teias de aranhas na selva, sair de lá com algumas na roupa e sacudi-las com cuidado para não as magoar em vez de ser em pânico para me libertar rapidamente do desconhecido.
Consegui. Subir a rochedos no meio de chuva, ainda que não tenha tido a capacidade de apreciar a vista... só queria descer novamente.
Consegui. Dar-me com quem me via como estrangeira branca, pegar num bebé que chorava perdido no mundo gigantesco à sua volta e levá-lo à mãe, falando numa língua que nada lhe dizia.
Consegui. Rir e chorar com estranhos.
Nada do que me possa acontecer está fora dos planos do universo; nem a morte. Tudo no seu ciclo. Tudo no seu tempo.
Consegui encontrar duas pessoas com ideais semelhantes aos meus, ainda que não falemos a mesma língua e não saiba se algum dia nos iremos tornar a ver.
Estou-lhes grata. Também por me terem dado a conhecer a Fundación Vicente Ferrer. Somos todos feitos do mesmo material. Eu tive só a sorte de ser filha daqueles pais, naquele terra, naquele país, naquela altura.
Mora mora.
Não foi assim, calmamente, aos poucos, que arrasei com duas vidas de uma só vez. Foi tudo de um repente.
Olhando para trás, não posso dizer que tivesse feito igual. Não posso negar arrependimentos.
Foi o que senti como necessário.
Agora necessário era conseguir avançar, também de um repente.
Passado um ano, mora mora, calmamente, já é tempo demais.
Não acho que um instante nos possa definir enquanto pessoas. Talvez enquanto pessoa naquele preciso instante.
Talvez não tenhas sido correcta em tantos desses instantes comigo, mas não acho que nada disso te defina hoje ou amanhã. Como no livro, o passado é um país estrangeiro.
Vi tanta miséria hoje. Que podia ser eu. Que podias ser tu. Somos nós nas nossas circunstâncias.
Pela primeira vez consigo dar um passo no sentido da libertação.
“The past may or may not be a foreign country. It may morph or lie still, but its capital is always Regret (...)” - André Aciman, Enigma Variations
A tranquilidade da superfície oculta a dificuldade da caminhada até aqui. Essa sabemo-la nós, que cá chegámos. Quem esteve ao lado e incentivou uma subida após outra; outra descida e mais uma. Num desfiladeiro que esconde dentro de si uma biodiversidade inimaginável.
No repouso transitório da hora de almoço esqueço-me por instantes das dores que me impedem os passos. É quando me levanto que as torno a sentir com a mesma intensidade.
É assim que me dóis quando penso em ti e me dou conta que não o fazia há horas.
Acabei o livro (Enigma Variations). Deve estar muito bem escrito porque senti toda a angústia. Aquela que já é minha também. Não foi fácil de digerir, ainda que o fim tenha sido um pouco anti-climático.
Satisfaz-me, contudo, ter percebido o instante a partir do qual nada, nunca mais, seria igual.
De costas para a cidade, olhar perdido nas águas do Tejo, sabendo que aquele instante seria o último de paz, sabendo que o segundo imediatamente a seguir a levantar-me do banco deixava sentada a alma e arrastava o corpo por uma cidade vazia.
Será isso o vinho da vida? A consciência exacta de cada instante pelo instante que é? Tenho tantas saudades daqueles minutos, ainda sentada. Antes de tudo.
Um nó cego.
Quando não sei o que fazer-lhe, passo à volta.
Através dos trilhos enlameados e enrolados em razões enraizadas no tempo, eu levanto-me e sigo.
Hoje não me apetece.
Foram horas de estrada má com o azul a encimar o vermelho e o verde. O vermelho da ilha; da terra que se cola às caras e às casas. O verde dos arrozais sem fim.
Horas de estrada má e música. Lembranças de tempos idos em viagens distantes contigo. O meu outro eu. A banda sonora da viagem iria certamente agradar-te.
Hoje foi a vida vista na paisagem corrida. Quem conheci. As oportunidades que me foram oferecidas por coisa nenhuma.
Ilha vermelha. Não sei o que me chamou aqui, mas relembrei o que consigo ser e fazer. Não sozinha. Jamais sozinha. Mas sem ti. Esse outro tu. Com todos os outros à volta. Quem me ouve à noite. Quem me aprecia de dia. Quem me oferece um sorriso inesperado em dias de frio.
Não sozinha. Nunca me senti tão perto do mundo como aqui.
Goodbye to the friends I've had
And I finally found my stride when I walked in the background