Gosto de café. Gosto que nos levem refeições e gelado. Gosto de chegar a casa e tomar banho para me tentar despir de algum SARS-CoV-2 teimoso. Gosto de cremes múltiplos e variados que me acalmem a pele desgraçada de tanta desinfecção. Gosto de me deitar numa cama. Gosto de ter cama. Gosto das ligações humanas estabelecidas por uma coisa terrível. É mau. Mas pode haver bom. (As minhas notificações vão ficar off para que a vida fique on.)
A 22/Março, depois de um turno, desliguei as notificações a bem da sanidade mental.
De cada vez que alguém, com ar vencedor, anuncia ter enganado a morte em determinada altura, eu pergunto-me como é possível essa sensação. Não a de ter adiado o inevitável, mas a de invencibilidade. Só me sinto invencível quando decido o que fazer com cada um dos meus instantes, agora. Precisamente por reconhecer, reflectir e aceitar a constante mudança de estados até que o estado seja nenhum.
Saber que a morte é certa e reflectir sobre o que isso diz da vida é uma capacidade única do ser humano, racional. Ainda assim, tantas vezes se prefere o pacto de silêncio como se, ignorando a paragem final, ela passasse por nós como todas as outras que se vêem pela janela de um combóio que não se detém.
Reconhecer - em consciência - a existência de um fim, ainda que não se saiba quando, dá-nos a capacidade de viver uma vida melhor. Mas basta um olhar em volta e encontram-se objectivos: o que alcançar; como alcançar; quando alcançar. Com a importância de algo capaz de permitir o acesso à vida eterna, uma vez atingido. Raramente se ouvem as perguntas: “porquê?”, “com que sentido?”, “para que fim?”.
Como o rei-filosófo de Platão advoga, nada que seja proveniente de uma natureza universal poderá ser mau na sua essência, mas apenas nos nossos julgamentos sobre aquela. A morte é uma dessas partes do todo. Porque não permitir o diálogo sobre ela? De forma a permitir uma saída de cena digna, sem (com menos?) arrependimentos.