Não sei filosofia que me permita uma dissertação. Sei que os argumentos apresentados na própria defesa e, posteriormente, no diálogo com Críton, me deixaram a pensar na aceitação (do que é). Morte incluída. A única certeza que poucos ousam trazer à discussão.
O ser humano parece apostado na imortalidade. Não fosse o novo vírus, aquele acidente trágico, aquela outra catástrofe natural... não fosse a vida e a vida era eterna.
Não sei, Atenienses, que impressão vos causaram os meus acusadores. Pela minha parte, ao ouvi-los, estive quase a esquecer-me de quem sou, a tal ponto eles foram persuasivos. E, no entanto, se assim me posso exprimir, não disseram uma só palavra verdadeira.
De cada vez que alguém, com ar vencedor, anuncia ter enganado a morte em determinada altura, eu pergunto-me como é possível essa sensação. Não a de ter adiado o inevitável, mas a de invencibilidade. Só me sinto invencível quando decido o que fazer com cada um dos meus instantes, agora. Precisamente por reconhecer, reflectir e aceitar a constante mudança de estados até que o estado seja nenhum.
Saber que a morte é certa e reflectir sobre o que isso diz da vida é uma capacidade única do ser humano, racional. Ainda assim, tantas vezes se prefere o pacto de silêncio como se, ignorando a paragem final, ela passasse por nós como todas as outras que se vêem pela janela de um combóio que não se detém.
Reconhecer - em consciência - a existência de um fim, ainda que não se saiba quando, dá-nos a capacidade de viver uma vida melhor. Mas basta um olhar em volta e encontram-se objectivos: o que alcançar; como alcançar; quando alcançar. Com a importância de algo capaz de permitir o acesso à vida eterna, uma vez atingido. Raramente se ouvem as perguntas: “porquê?”, “com que sentido?”, “para que fim?”.
Como o rei-filosófo de Platão advoga, nada que seja proveniente de uma natureza universal poderá ser mau na sua essência, mas apenas nos nossos julgamentos sobre aquela. A morte é uma dessas partes do todo. Porque não permitir o diálogo sobre ela? De forma a permitir uma saída de cena digna, sem (com menos?) arrependimentos.
Gosto do silêncio. Encontrei-o quando reduzi a vida.
Consigo estar, ler e pensar. Conseguiria ser se a angústia não aparecesse, ao virar da página, para me envolver com o seu abraço.
A angústia em relação à (ausência) de sentido, de valor. A angústia em relação ao vazio. À morte que me levou a voz e o toque de quem me desenhou a vida.
A finitude da vida deveria ser a sua força motriz. Mas quem serei eu quando não for o que conheço?
Foi simples libertar o corpo dos bens materiais supérfluos. Foi simples encontrar este silêncio. Mas como se liberta a mente, a consciência, a alma, quando o corpo é a mais pesada das âncoras?
Fecho o livro e fujo para o som da música.
“(...) what it means to die, and that if one considers death in isolation (...), one will no longer consider it to be anything other than a process of nature, and if somebody is frightened of a process of nature, he is no more than a child” - Marcus Aurelius, Meditations
Sob um céu despido de nuvens, à sombra dos pinheiros que plantámos há uma vida atrás, reencontrei-te. A ti e a nós.
Pela primeira vez em 12 anos tornei a sentir-te; cinza suave entre os meus dedos. Todo o nada exterior que somos transformado na vida que preencheste.
Percorri o Verão de outrora na imagem do barco parado, ali derrotado, sob a coberta cheia de pó e de lixo. A proa, exposta ao sol, tem a tinta a estalar.
À distância dos anos a saudade tem a imensidão do mar que velejámos; a imensidão de tudo quanto (de ti) fiquei por conhecer.